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Refletindo sobre o trabalho de campo no Judiciário: quando a realização da pesquisa se torna um dado
Resumo: Este trabalho analisa as experiências de seis pesquisadores durante pesquisa de campo em Audiências de Custódia na cidade de São Paulo em 2019. Aspectos como as dificuldades de acesso ao Fórum, a indiferença dos juízes e relatos de intimidação narrados pelos pesquisadores indicam que embora existam regulações formais das audiências, coexistem processos de personificação da lei e dos procedimentos conduzidos pelos magistrados que por vezes contradizem essas regulações. Essas experiências vivenciadas pelos pesquisadores reforçam sob um outro ponto de vista, entraves à legitimidade do sistema de justiça, já apontados por pesquisas que discutem essa relação aos olhos dos cidadãos.
Palavras-chave: Audiências de Custódia, Legitimidade, Judiciário, Justeza procedimental.
Reflecting on fieldwork carried out in the Judiciary: when the research process becomes part of the findings
Abstract: This paper analyzes the fieldwork experiences of six researchers in Custody Hearings in the city of São Paulo in 2019. Aspects such as the difficulties in accessing the Forum, the indifference of the judges, and the reports of the intimidation suffered by the researchers, indicate that although there are formal regulations for hearings, processes of personification of the law and of the procedures conducted by magistrates coexist, which sometimes contradict these regulations. The experiences of the researchers reinforce another aspect of the issue: the obstacles to the legitimacy of the Criminal Justice System, already pointed out by previous research discussing this relationship from the citizens’ perspective.
Keywords: Custody Hearings, Legitimacy, Judiciary, Procedural Justice.
Reflexiones sobre el trabajo de campo en el Poder Judicial: cuando el procedimiento de investigación de transforma en datos
Resumen: Este trabajo analiza las experiencias de seis investigadores durante sus estudios de campo en Audiencias de Custodia en la ciudad de San Pablo, en 2019. Aspectos tales como las dificultades en el acceso al Foro, la indiferencia de los jueces y los relatos de intimidación narrados por los investigadores indican que aunque existan regulaciones formales para las audiencias, coexistem procedimientos de personificación de la ley y de los procedimientos llevados a cabo por los magistrados, que a veces contradicen esas regulaciones. Las experiencias vivenciadas por los investigadores refuerzan otro aspecto: las trabas a la legitimidad del sistema de justicia que ya fueron remarcadas por investigaciones que discuten esa relación a los ojos de la ciudadanía.
Palabras clave: Audiencias de Custodia, Legitimidad, Poder Judicial, Proceso judicial justo.
Introdução
O contato é um elemento importante para a construção da legitimidade e reconhecimento de uma autoridade de acordo com a teoria da Justeza Procedimental desenvolvida pelos estudos de Tom Tyler e outros autores. Segundo esse modelo, a percepção de uma autoridade como legítima é fortemente influenciada pela avaliação que os cidadãos fazem do tratamento recebido por ela (Tyler, 2004). Quando os procedimentos adotados pelas autoridades no contato com a população são pautados pela neutralidade, o respeito, o direito de voz e o accountability, os cidadãos tendem a melhor reconhecerem essa figura de autoridade e a cooperarem com ela (Bottoms & Tankebe, 2012; Haas et al., 2015). Portanto, o contato é uma ocasião privilegiada para construir a avaliação das pessoas sobre aquela autoridade, contribuindo também para o processo de construção da legitimidade das próprias autoridades, o que chamamos de auto-legitimidade (Gau & Paoline, 2019; Tankebe, 2014).
Essa perspectiva teórica tem sido amplamente utilizada em estudos internacionais sob a prerrogativa de que uma maior atenção a esses procedimentos poderia aprimorar a relação da sociedade com as autoridades. A maior parte dessas pesquisas tem focado na relação entre a polícia e a sociedade (Bradford et al., 2014; Tankebe, 2019), entretanto, ainda que em menor quantidade, alguns estudos utilizam esse modelo para pensar a relação dos cidadãos com as autoridades judiciárias (Cheng, Pushkarna, & Ri, 2020; Connor, 2018; Tyler, 2007). Em resumo, esses estudos demonstram como a qualidade do tratamento e os procedimentos adotados pelas autoridades no desenrolar desse contato importam para a construção da legitimidade das autoridades judiciais.
A partir do diálogo com esta perspectiva, estamos realizando desde 2013 uma pesquisa qualitativa no âmbito dos operadores da Justiça da cidade de São Paulo. A primeira etapa consistiu na realização de entrevistas com juízes paulistas a respeito da sua legitimidade na relação com a população e com o próprio Judiciário. Nesta ocasião, foram identificadas entre os juízes paulistas duas visões sobre o contato; a primeira afirma que ele não é relevante para a decisão judicial, considerando que esta é baseada somente em argumentos técnicos, e a segunda afirma que o contato pode produzir decisões melhores e mais justas porque permite conhecer as particularidades de cada caso (Gisi, Jesus, & Silvestre, 2019, p. 259). As audiências de custódia representariam um desses momentos em que o contato permitiria conhecer melhor o contexto do caso e características do(s) réu(s). Em virtude disso, decidimos desenvolver uma nova etapa da pesquisa que permitisse aprofundar a compreensão da construção da autoridade nas situações de interação com o público. Esse momento da pesquisa envolveu a observação em equipe de audiências de custódia realizadas na cidade de São Paulo.
Selecionamos a audiência de custódia como o objeto dessas observações porque, além de terem sido mencionadas pelos juízes entrevistados como momento em que o contato é importante (Gisi et al., 2019), outras razões relacionadas às origens desse tipo de audiência fortalecem a pertinência em tê-lo como objeto de observação dos contatos entre atores do sistema de justiça e cidadãos. A audiência de custódia foi implementada no Brasil em 2015 e consiste na apresentação da pessoa presa em flagrante a uma autoridade judicial no prazo máximo de 24 horas, a fim de averiguar a legalidade e a necessidade da prisão e questões relativas à integridade física e psíquica do preso decorrentes da prisão. A partir de então, os juízes passaram a ter contato direto com a pessoa presa em flagrante para decidir sobre a manutenção ou não da prisão provisória, o que era decidido anteriormente por meio de análise dos papéis referentes aos Autos de Prisão em Flagrante. Existia uma expectativa inicial no país de que esse contato poderia contribuir para minimizar os altos índices de prisão provisória no país (Instituto de Defesa do Direito de Defesa, 2016a). De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre fevereiro de 2015 e dezembro de 2019, foram realizadas cerca de 652 mil audiências de custódia em todo o país.
Neste trabalho propomos uma reflexão sobre a importância dos procedimentos para o reconhecimento de autoridades judiciais a partir das experiências vivenciadas pelos próprios pesquisadores durante o processo de observação dessas audiências. Se a técnica qualitativa de observação para produção de relatos etnográficos sempre mobiliza as experiências do pesquisador na coleta de dados, no caso da nossa pesquisa, essas experiências são parte do objeto de estudo. Como nosso interesse inicial eram as interações entre autoridades judiciais e cidadãos, as vivências dos pesquisadores no contato com os juízes e demais atores do sistema de justiça tornaram-se uma importante fonte de informações para a análise sobre como essas autoridades são construídas. Nesse sentido, a pesquisa de campo significou não apenas o acesso às interações entre atores jurídicos e não jurídicos, mas representou também um exercício de reflexão sobre a forma como as autoridades judiciais lidam com pessoas externas ao mundo jurídico, sobretudo, aqueles que tentam compreender este universo com olhares de fora. Acreditamos que o contato dos pesquisadores com funcionários do Fórum e autoridades jurídicas, os desafios para a realização das observações das audiências de custódia, os questionamentos constantes, os procedimentos e orientações diversas a serem seguidas nos colocaram diante de características importantes do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal brasileiro.
O artigo está organizado em três partes: a primeira apresenta uma síntese de estudos sobre a Justeza Procedimental com foco nas pesquisas realizadas no Judiciário ao redor do mundo e faz um breve histórico dos resultados de pesquisas etnográficas anteriores realizadas no âmbito do Judiciário brasileiro; a segunda aborda o percurso da pesquisa, contemplando a preparação de entrada no campo e os obstáculos e desafios colocados nesse momento, o desenrolar da pesquisa de campo e os entraves encontrados no contato direto com os juízes e outros atores do sistema de justiça, e a terceira aborda as reflexões da experiência de pesquisa como uma fonte de dados relevante para a própria pesquisa
Construindo a legitimidade a partir do contato
A Justeza Procedimental é definida pela justeza no processo de decisão (Peršak, 2016). De acordo com essa teoria, as pessoas estariam mais dispostas a obedecerem às regras quando reconhecem a legitimidade dos atores que as emitem. A legitimidade advém de um processo contínuo desenvolvido e atualizado pelo diálogo estabelecido entre as reivindicações dos detentores de poder e as respostas de reconhecimento da audiência (Bottoms & Tankebe, 2012). Portanto, mais do que o uso da coerção, a percepção de que em uma situação de tomada de decisão os procedimentos foram aplicados de forma justa e correta levaria ao aumento da disposição para obediência e cooperação com as autoridades (Zanetic et al., 2016).
Tom Tyler é um dos precursores desta linha teórica. Para ele, a Justeza Procedimental seria composta pelos seguintes atributos: (a) a sensação de que os indivíduos participaram do processo de decisão; (b) a percepção de que a autoridade que aplicou a lei agiu de forma neutra; (c) a percepção de que as decisões foram tomadas de forma transparente e baseadas nos fatos; (d) a qualidade do tratamento interpessoal, e (e) a confiança nas intenções das autoridades. Em poucas palavras, espera-se que as autoridades adotem um tratamento igualitário e respeitoso para todos os cidadãos, e que todas as suas ações sejam baseadas em fatos e explicadas de forma clara (Tyler, 2004).
Essa perspectiva teórica tem estimulado alguns estudos no campo do Judiciário ao redor do mundo, com destaque para os países desenvolvidos. Tyler (2007), por meio de um questionário aplicado para cidadãos que haviam buscado as cortes, buscou responder à pergunta de por que as pessoas aceitavam as decisões das cortes, ele identificou que a atenção aos princípios da Justeza Procedimental foi considerada mais importante do que um desfecho favorável para os respondentes. Tyler destacou ainda como até as interações triviais precisam ser consideradas para analisar as percepções das pessoas sobre as cortes e que essas experiências podem impactar a percepção do público sobre aquela autoridade por muitos anos.
Os estudos que testam a teoria de Justeza Procedimental usualmente utilizam a aplicação de questionários destinados para a população em geral ou para pessoas que já passaram por experiências com as autoridades judiciais (Cheng et al., 2020; Greene et al., 2010; Tyler, 2007). Cheng et al. (2020) ao analisarem a visão dos cidadãos de Hong Kong concluíram que quanto mais o público percebe que os tribunais agem de maneira procedimentalmente justa ao tomarem decisões, maior será a disposição do público de obedecer às sentenças dos tribunais e maior a probabilidade de o público perceber as sentenças dos tribunais como normativamente alinhadas com seus próprios valores e crenças. Greene et al. (2010) observaram audiências do sistema de justiça juvenil em Toronto e aplicaram questionários para os jovens logo após o primeiro contato com a corte. Os autores concluíram que existia uma correlação entre a avaliação do tratamento recebido pelas autoridades judiciais e a percepção de legitimidade no sistema de justiça.
Outros estudos, ainda que em menor quantidade, têm adotado técnicas de pesquisa qualitativas, como entrevistas ou observação das audiências (Connor, 2018). Tyrell Connor (2018) realizou uma pesquisa de observação de audiências em três cortes comunitárias dos Estados Unidos e concluiu que os juízes tendem a seguir os princípios da Justeza Procedimental, no entanto, pode haver diferenças significativas na atenção aos procedimentos a depender do local que a corte está situada e da atuação de cada juiz. A maior variação foi observada na concessão do direito de voz para os réus falarem diretamente com o juiz. Os outros três componentes da Justeza Procedimental foram aplicados de níveis moderados a altos nas três cortes analisadas. O trabalho de Connor demonstra, portanto, a importância de se realizar pesquisas qualitativas no campo do Poder Judiciário, sendo a etnografia uma valiosa metodologia. No caso da nossa pesquisa, em especial, trazemos a discussão de que a própria realização da pesquisa de campo, da interação que tivemos com o judiciário configurou-se como dado de pesquisa, nos ajudando a compreender o que acontece nesses espaços.
A concepção e a implementação das audiências de custódia podem ser consideradas uma estratégia nesse sentido. Apesar de terem sido instituídas com o objetivo de garantir os direitos das pessoas presas pela polícia e oportunizar a sua presença diante do juiz, as pesquisas já realizadas no país sobre o funcionamento das audiências de custódia demonstram que esse dispositivo tem se desviado de suas funções e se acomodado à “velha” forma de funcionamento do sistema de justiça criminal (Dias & Kuller, 2019; Jesus, 2016; Kuller, 2017; Lages & Ribeiro, 2019; Toledo, 2019), com sua seletividade e moralismo autorreferenciado, com a permanência do descrédito das narrativas das pessoas presas, sobretudo das referentes à violência institucional (Bandeira, 2018; Kuller, 2017). Apesar de todo o potencial de conferir o contato da pessoa presa com os atores do sistema de justiça e a possibilidade de averiguação de violência policial, a audiência de custódia transformou-se num procedimento padrão, tornando-se apenas uma etapa pré-processual (Silvestre, Jesus, & Bandeira, 2020), que tem como foco dar conta de realizar as audiências com celeridade, o que coloca a decisão judicial em uma lógica de produtividade (Ferreira, 2017). Em síntese, as pesquisas já realizadas no país sobre as audiências de custódia demonstram que esse instrumento teve pouco efeito na alteração do modo de funcionamento do sistema de justiça criminal. A aposta de que o encontro da pessoa presa com o juiz, promotor e defensor pudesse impactar o modo de produção das decisões e reduzir a frequência de prisões preventivas não se realizou. Ao que parece, a audiência de custódia é muito pouco relevante, e, na grande maioria dos casos, as decisões são tomadas a priori a partir da tipificação dos casos (Gisi et al., 2022).
Assim como grande parte das pesquisas citadas no parágrafo anterior, parte considerável das pesquisas realizadas sobre o Judiciário no Brasil tem adotado abordagens qualitativas, especialmente de cunho etnográfico. Uma das vantagens dessa forma de abordagem é a possibilidade de captar comportamentos explícitos ou sutis que escapam aos documentos judiciais ou aos dados formais. Pesquisas dessa natureza também foram realizadas em outros espaços judiciais, como os tribunais do júri (Nuñez, 2018), os julgamentos motivados pela lei de drogas (Jesus, 2016) e os Juizados Especiais Criminais (Azevedo & Sinhoretto, 2017). Apesar de manterem algumas singularidades, em resumo, essas pesquisas têm reforçado alguns pontos importantes sobre o funcionamento do judiciário brasileiro, entre eles: (a) a tendência dos magistrados confirmarem a narrativa policial dos fatos, (b) a ausência de um efetivo espaço de voz para os réus, (c) a ideia de que as decisões judiciais são pré-fabricadas independentemente do momento da audiência, e (d) que por adotarem amplamente a linguagem jurídica, os rituais judiciais muitas vezes são marcados pela não compreensão dos atores não familiarizados com o vocabulário e o ritual judicial.
O que a nossa pesquisa traz em termos de inovação com relação às pesquisas anteriores é a reflexão sobre o próprio exercício da pesquisa de campo como fonte de informação sobre o funcionamento do universo pesquisado, ou seja, como o contato dos pesquisadores também pode ser concebido como dado de análise com relação às formas de interação entre os atores pertencentes a esse campo e os atores externos, no caso, nós, pesquisadores. Portanto, é possível dizer que a etnografia corresponde a uma estratégia de pesquisa importante para a compreensão da dinâmica, dos contextos, cultura, normas, etc., o que a torna uma ferramenta muito valiosa para o estudo das práticas sociais na vida cotidiana.
Escolhas metodológicas
As abordagens metodológicas de qualquer pesquisa envolvem uma filosofia particular da ciência. Assim, cada decisão metodológica ao pesquisar um fenômeno assume algumas suposições sobre a natureza da realidade, a forma de abordá-la e o papel do pesquisador nesse processo (Kuhn, 1992). Portanto, a abordagem metodológica da pesquisa e as implicações práticas derivadas delas exigem muita reflexão ativa e crítica sobre as informações que foram coletadas e sobre seu sentido epistêmico. Ou seja, o processo de pesquisa transforma as informações coletadas durante o trabalho de campo em fatos ou conhecimentos epistêmicos que são produtos de um processo de reflexão socialmente construído (De Bruyne, Herman, & Schoutheete, 1991). Dado que o conhecimento é um processo intersubjetivo e dependente do contexto, refletir coletivamente sobre a nossa experiência como pesquisadores dentro deste processo de pesquisa ajuda não só a ganhar perspectiva sobre o fenômeno, mas também nos permite identificar possíveis vieses pessoais.
Neste trabalho, a decisão de realizar uma pesquisa de caráter qualitativo nas audiências de custódia foi motivada pela possibilidade de acessar aspectos das situações de contato que não podem ser captados em pesquisas quantitativas. Assim, o uso da etnografia como metodologia de pesquisa do campo jurídico se mostra bastante frutífera não apenas pelo que pode permitir ser observado nas interações em audiência, por exemplo, mas também pela própria relação dos pesquisadores com os atores do campo. Portanto, aquilo que poderia inicialmente parecer um obstáculo ou impedimento para o desenvolvimento ideal da pesquisa pode ser concebido como algo a ser estudado, compreendido e construído pelo pesquisador como dados que fornecem luz para o mundo que se quer estudar. Seguimos a perspectiva dos estudos qualitativos sobre as instituições judiciais que enfatiza os ganhos dessa abordagem para a compreensão dos aspectos tácitos das práticas nesses espaços institucionais. Ao mesmo tempo, enquanto as pesquisas qualitativas no âmbito do Judiciário até então tem refletido sobre a audiência enquanto objeto de estudo, nós também nos posicionamos como objetos desse estudo, portanto, consideramos o tratamento que nós recebemos para pensar as práticas destinadas aos atores “não judiciais” da audiência. Evidentemente que reconhecemos que existem grande disparidades ao tratamento dispensado aos réus ou aos cidadãos que buscam as cortes em relação ao tratamento dispensado à pesquisadores, no entanto, acreditamos que este contato também é capaz de informar sobre as práticas e procedimentos adotados pelo sistema judicial brasileiro.
Para Kant de Lima e Bárbara Luppetti (2014), o trabalho de campo nas instituições judiciais permite perceber valores e ideologias diferentes daqueles que informam explicitamente os discursos oficiais do campo (Lima & Baptista, 2014). Uma das características da abordagem qualitativa que favorece o acesso a esses aspectos tácitos é a produção de dados a partir da experiência do pesquisador em campo. Assim, o trabalho de campo fornece informações valiosas para compreender as audiências de custódia não só com as informações que traz dos atores diretamente envolvidos, mas também a partir da experiência dos pesquisadores no contexto da realização da pesquisa. Isto significa que a experiência do pesquisador pode ser considerada um dado de pesquisa em si, pois o/a pesquisador/a participa de todo o evento e está imerso em toda a teia de interações que compõe aquela situação. Descrever a experiência desse contato com o campo revela não apenas os desafios de se empreender pesquisas empíricas no Direito, mas como os atores do sistema de justiça recepcionam pesquisadores, compreendendo-os como alguém que está fora do universo jurídico e “estranho” aquele ambiente (Schritzmeyer, 2002).
Também nos deparamos diante do desafio de analisar coletivamente os dados colhidos em campo. Enquanto os trabalhos de observação e análise costumam ser conduzidos individualmente, neste trabalho contamos com a participação e interpretação de cinco pesquisadores,[1] refletindo sobre as experiências de si próprios e dos demais membros da equipe. Nas próximas subseções apresentaremos e debateremos cada uma dessas etapas.
Antes da audiência de custódia: o processo de entrada em campo
O desenho preliminar da pesquisa previa uma coleta de dados baseada em: i) observação direta das audiências de custódia, para analisar as interações entre os diferentes atores no momento do exercício da autoridade dos magistrados; ii) entrevistas com juízes e juízas que conduzem as audiências, para acessar suas percepções sobre o contato e a importância atribuída a ele; iii) entrevistas com pessoas custodiadas, para analisar se houve compreensão da audiência, da decisão do juiz, se houve espaço para manifestações, se sentiram-se tolhidas no uso da palavra, dentre outras informações que ajudariam a entender como aquele contato é compreendido pelas pessoas que são mais afetadas pelas decisões dos juízes.
Fazer pesquisa empírica no Judiciário tem entre seus maiores desafios o acesso ao campo, que tem como sua própria característica ser extremamente controlado, autocentrado e formalizado (Ferraz, 2017). Em razão disso, embora as audiências de custódia sejam públicas, consideramos que uma autorização formal seria importante para aumentar a receptividade dos atores da audiência à nossa presença. Cabe destacar que o Fórum Criminal da Barra Funda foi o pioneiro no Brasil na implementação das audiências de custódia e já foi objeto de uma série de pesquisas anteriores (Azevedo et al., 2018; Instituto de Defesa do Direito de Defesa, 2016b), além de teses de doutorado e dissertações de mestrado (Bandeira, 2018; Jesus, 2016).
A realização das audiências de custódia em São Paulo é uma das competências do Departamento de Inquéritos Policiais de São Paulo (DIPO-SP), atualmente conduzido por uma juíza corregedora. A escolha do juiz corregedor ocorre por meio de nomeação do Corregedor Geral da Justiça. Essa escolha tem impacto considerável nas audiências de custódia, considerando que cabe a este juiz o papel de formar a equipe que conduzirá as audiências. Além disso, outras decisões relacionadas ao funcionamento das audiências também podem estar associadas a gestão do juiz corregedor. Na ocasião da implementação das audiências de custódia a gestão do DIPO foi considerada aberta à pesquisa (Silvestre et al., 2020), o que contribuiu para a realização das pesquisas citadas anteriormente. Em 2018 ocorreu uma mudança na gestão do DIPO e assumiu o departamento uma juíza conhecida pela rigidez de suas decisões. Conforme apontam Silvestre et al. (2020), essa rigidez se refletiu também no tratamento dado à pesquisa e os pesquisadores.
Em setembro de 2019, a equipe fez contato com a assessoria da juíza corregedora do DIPO e agendou uma reunião para obter autorização para a realização da pesquisa. Nos reunimos com a juíza corregedora no mesmo mês, e, quando mencionamos que a pesquisa pretendia analisar a percepção de todos os participantes da audiência sobre aquele contato, a juíza imediatamente nos interrompeu e questionou se pretendíamos falar com os presos. Ao receber a resposta afirmativa, a juíza respondeu:
Não posso permitir que vocês conversem com os presos. Não posso submetê-los a essa situação. Eles ficam aqui no Fórum, passam pela audiência, ficam cansados, não posso submetê-los a uma entrevista. Aliás, quando vem o pessoal da TV fazer reportagens aqui tomo todo o cuidado para eles não serem vistos, peço para virarem de costas. Falar com preso não dá (Juíza corregedora – anotação livre de diário de campo).
Tentamos argumentar que esse era o nosso desenho de pesquisa ideal e que sabíamos das dificuldades envolvidas, e ela insistiu que não poderia permitir porque ela “tinha que preservar os presos”. Diante da negativa de ouvir os custodiados, pedimos autorização para entrevistar os juízes, com a expectativa de que esta autorização fosse concedida levando em conta a autonomia dos magistrados. No entanto, a corregedora também negou este acesso:
Não, com os juízes vocês não vão falar. Quando é assim, eu que falo por eles. Afinal, eles já trabalham muito, têm uma carga horária carregada, e o meu papel é o de representá-los. Então, se vocês quiserem vocês podem assistir algumas audiências e depois vir falar comigo. Só peço que mandem o roteiro de perguntas antes (Juíza corregedora – anotação livre de diário de campo).
Desta forma, redesenhamos a pesquisa de campo direcionando o foco apenas para a observação das audiências. Também enfrentamos entraves na concessão de acesso às audiências. O Fórum Criminal da Barra Funda é aberto ao público somente no período da tarde, sendo que pela manhã o acesso é permitido apenas a funcionários, operadores, advogados, estagiários e pessoas intimadas. As audiências de custódia começam pela manhã, por volta das 9 horas e seguem durante a tarde, após um intervalo para o almoço. A equipe solicitou à corregedora uma autorização especial para que os pesquisadores pudessem acessar o Fórum pela manhã e assim acompanhar as audiências ao longo do dia, autorização que já fora concedida em pesquisas realizadas em gestões anteriores por alguns membros da equipe. Contudo, a juíza não fez tal concessão e autorizou que os pesquisadores acompanhassem as audiências apenas no período da tarde, que já é aberto ao público. Essa negativa reforça uma menor recepção dessa gestão à pesquisa. Essas restrições impactaram o desenho metodológico da pesquisa, uma vez que não seria possível ouvir a versão dos presos e dos juízes que conduzem as audiências, tampouco acompanhar a maior parte das audiências, que ocorrem no período da manhã.[2]
Neste sentido, um dos dados de pesquisa derivados de nossa experiência como pesquisadores antes de iniciar o trabalho de campo é a dificuldade de acesso aos espaços que ocorrem as audiências de custódia, apesar de em teoria esses espaços serem de acesso público. Ou seja, encontramos algumas restrições institucionais (explícitas e sutis) que limitavam o acesso direto a alguns espaços e pessoas que compõem a audiência de custódia. Isto poderia ser interpretado como uma espécie de hermetismo institucional que guarda o tipo de informação que pode ser acessada e que é determinada por algumas diretrizes circunstanciais, e não pelas regulamentações em vigor. Esta consideração é fundamental para compreender a abertura, a neutralidade e a disposição das audiências de custódia vividas pelas pessoas presas, justamente um dos pontos mobilizados pela literatura sobre legitimidade.
Durante a audiência de custódia: o trabalho de campo
A pesquisa de campo teve início no mês de outubro de 2019 e durou até dezembro do mesmo ano. No período, os seis pesquisadores envolvidos no campo da pesquisa observaram 138 audiências. Foi possível acompanhar cada um dos 11 juízes que integravam o departamento por pelo menos uma vez. Durante a pesquisa também tivemos contato com juízas, contudo, para elaboração do texto, nos referimos aos juízes sempre no masculino.
Cada um dos pesquisadores anotava em seu diário de campo a experiência daquele dia, o que foi de extrema importância para a sistematização dos dados da pesquisa e compartilhamento das situações vivenciadas no contato com os funcionários do Fórum e atores do sistema de justiça, entre elas, os entraves da realização da pesquisa de campo. Apesar da autorização concedida, experienciamos dificuldades no reconhecimento e aceitação da nossa presença como pesquisadores autorizados a assistir às audiências, sendo questionados por diversas vezes, em diferentes momentos, por funcionários da segurança, do cartório, juízes e promotores.
As audiências de custódia correm no subsolo do Fórum Criminal da Barra Funda; o local é isolado por uma porta de vidro e o acesso controlado por duas funcionárias terceirizadas que mediam o acesso às salas de audiência ou demais salas ou setor. Usualmente, os advogados são conduzidos para uma sala de espera específica para eles, onde deverão aguardar as audiências que vieram defender; os familiares não são autorizados a entrar, e são orientados a subir e aguardar por informações no corredor em um andar superior; os alunos do curso de Direito ou pesquisadores são orientados a aguardar na lateral esquerda, de forma a não atrapalhar o acesso dos demais ao setor. Enquanto aguardamos, através de um rádio, as funcionárias se comunicam com o cartório, que orienta quais juízes autorizarão a entrada de alunos do curso de Direito ou pesquisadores, e quantas pessoas cada juiz aceita receber. Uma vez autorizado, somos conduzidos por elas até a sala designada.
Este protocolo era repetido em todas as idas à campo. A partir de um dado momento as funcionárias já reconheciam nossos rostos e pediam apenas que aguardássemos, sem ser necessário repetir a apresentação. Mesmo comunicando que tínhamos autorização da juíza corregedora para assistir às audiências, nossa presença sempre gerava um desconforto entre os funcionários, que foi progressivamente aumentando. Posteriormente, descobrimos que havia uma resistência por parte dos juízes em aceitar nossa presença nas salas, e, pelo desconhecimento que eles demonstravam sobre nossa presença, acreditamos que a juíza corregedora não os/as comunicou sobre a autorização concedida à pesquisa.
Até que a sensação de desconforto se tornou um entrave direto às audiências. Em uma das idas a campo, a funcionária da portaria nos informou que nem todos os juízes estavam “aceitando receber pesquisadores”, somente estagiários com carteirinha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou com relatórios de estágio. “Tem juiz que não gosta que entra na sala (sic)”, nos disse a funcionária. Informou ainda que pesquisadores não eram bem-vindos, muito provavelmente porque os juízes não gostaram ou não concordaram com a repercussão dos dados de alguma pesquisa. Ela ainda relatou que estava com dificuldade de achar uma sala para nos “colocar”, pois vários juízes não aceitavam mais do que uma pessoa assistindo a audiência em “sua sala”.
Em um determinado dia, quando a pesquisa de campo já estava em andamento há cerca de quatro semanas, percebemos uma tensão ainda maior e a funcionária da entrada pediu que aguardássemos. Então a chefe do cartório veio até nós e explicou que os juízes estavam incomodados/as com a presença de pesquisadores nas audiências. Nós reforçamos que tínhamos a autorização da juíza corregedora e ela nos respondeu: “então me ajudem” porque ela não sabia como intermediar a situação. Ficou claro que ela havia recebido reclamações dos/as juízes e não sabia como conciliar a negativa deles com a autorização da corregedora. Apesar dessas dificuldades, conseguimos prosseguir com o campo. No entanto, esses entraves impactaram sensivelmente nossa pesquisa, já que acabamos acompanhando com maior frequência os/as juízes que eram menos resistentes à nossa presença.
Quando adentrávamos nas salas, especialmente nas primeiras vezes em campo, nos apresentávamos como pesquisadores para os juízes, defensores e promotores. Usualmente os juízes ignoravam a presença da equipe e não interagiam com os pesquisadores, mas em algumas situações eles perguntavam sobre a pesquisa, quais eram os objetivos, de onde éramos. Em poucas ocasiões, após ouvirem sobre a pesquisa falaram brevemente sobre suas percepções acerca das audiências de custódia.
Entretanto, em uma ida a campo, um dos membros da equipe vivenciou uma experiência de intimidação por parte de um juiz e um promotor. Após assistir às audiências em uma sala em que o juiz concluiu a pauta em cerca de 40 minutos, o pesquisador retornou à recepção e solicitou à funcionária que fosse encaminhado para outra sala, para que o trabalho de campo continuasse. O pesquisador foi então encaminhado à sala de um juiz com aparência jovem e que o recebeu de forma ríspida, perguntando sobre a pesquisa e interrompendo suas respostas com novas perguntas, sem deixar que ele concluísse as frases. Após explicar brevemente sobre a pesquisa e sobre o instituto que abriga a pesquisa, o juiz solicitou que o pesquisador apresentasse um documento de identificação, e, quando apresentado, o juiz fotografou o documento com seu celular, perguntando se poderia fotografar, enquanto já o fazia. Foi uma situação bastante constrangedora para o pesquisador, que ficou pior com a intervenção do promotor que estava na sala e que, logo depois do ocorrido, começou a rir discretamente e o juiz perguntou a ele o motivo do riso. Enquanto mexia no notebook ele respondeu ironicamente: “estou vendo umas pesquisas aqui”. Exceto na situação narrada acima, raramente os juízes interagiam com a equipe da pesquisa, muitas vezes mal nos olhavam, mas em algumas ocasiões sentimos que havia constrangimento à nossa presença.
Levando em conta nossa experiência durante o trabalho de campo, outro elemento que emerge como um importante dado de pesquisa é a tendência de personalizar regras e procedimentos. Ou seja, embora os procedimentos sejam estipulados legalmente e existam protocolos para as ações dos atores, os juízes não monstravam preocupação em demonstrar o cumprimento desses protocolos e a realização dos procedimentos parecia depender da vontade pessoal deles. Assim, alguns juízes limitaram o acesso a suas salas e ficaram descontentes com a presença de pesquisadores que observariam sua atuação durante as audiências. Esta falta de cooperação na demonstração de seus procedimentos, bem como o uso de sua autoridade para impedir o acesso a espaços que eram públicos e cujo acesso tinha sido previamente autorizado, pode denotar falta de transparência ou medo de serem questionados em seus procedimentos. Esta personalização da lei é um elemento que também foi observado nas audiências de custódia, quando os juízes usam um discurso moralizante com os custodiados e os comprometem a algum “pacto” para a concessão da liberdade provisória (e. g., juízes falaram coisas para os custodiados, do tipo: “o Senhor tem um compromisso comigo”; “eu lhe darei a oportunidadede responder livremente”; “se você cair comigo novamente, você nem sequer falará”). Neste sentido, o princípio de neutralidade e transparência que a justiça procedimental busca é ameaçado e pode ser rastreado tanto nas observações de campo das interações do juiz com o custodiado, quanto em nossas experiências com toda a dinâmica da audiência de custódia.
O processamento e análise da experiência de pesquisa
Neste estudo utilizamos uma abordagem etnográfica, na qual a experiência dos/das pesquisadores tem um papel chave na construção do fenômeno estudado. A etnografia fornece um método útil para aprender sobre as práticas e conhecimentos sociais de uma determinada comunidade, pois nos permite abordar esses contextos e observá-los de forma rigorosa e sistemática (Hammersley & Atinkson, 1983). Um dos principais desafios desta abordagem é identificar aquelas práticas cotidianas específicas ao contexto que criam a realidade social estudada. Neste sentido, uma das dificuldades dos estudos etnográficos é sua dependência do “etnógrafo” ou observador, assumindo que o pesquisador consegue captar parte da dinâmica da realidade que pretende estudar. Entretanto, este processo de observação pode ser refinado através da reflexão coletiva entre os/as pesquisadores, com um exercício rigoroso de auto-observação e crítica.
A participação de vários pesquisadores simultaneamente durante o trabalho de campo, bem como o processo de discussão para organizar toda a análise tem sido um processo de elaboração conjunta no qual diferentes níveis de análise têm sido incorporados (Spink et al., 2014). Este procedimento cria um processo indutivo a partir da observação de incidentes específicos durante a audiência de custódia, bem como um processo de interpretação intersubjetiva destas práticas. Quando o pesquisador passa de um relato descritivo de sua experiência para um processo interpretativo de negociação de significados e sentido, ele ou ela se torna consciente da construção social e intersubjetiva do fenômeno em estudo (Spink & Medrado, 2000). Em nosso caso, as Audiências de Custódia são o produto de nossa observação no campo, nossa experiência durante a pesquisa e nossa reflexão sobre todo o processo.
Por esta razão, um elemento adicional de nossa experiência como pesquisadores que se torna um dado de pesquisa é que desempenhamos um papel ativo em todo o processo de construção do objeto de estudo. Ou seja, os resultados de nossas pesquisas sobre as audiências de custódia incluem um exercício sistemático e rigoroso de observação, bem como um exercício de discussão coletiva e reconstrução da audiência de custódia com base em conceitos teóricos de diferentes disciplinas. Assim, nossa experiência como pesquisadores e nossas discussões se tornam um input de pesquisa que ajuda a tornar nossas descobertas transparentes e robustas (Spink & Medrado, 2000). A Justeza Procedimental, portanto, não se limita apenas ao que observamos nas interações do Judiciário com o custodiado, mas inclui nossa própria experiência com o Judiciário e nossa maneira de dar sentido a essa experiência.
Considerações para o debate
Em suma, podemos dizer que o próprio “fazer” da pesquisa nos trouxe dados importantes sobre o “comportamento” dos atores de justiça com relação a atores externos ao campo jurídico. O contato parece exigir sempre algo previsível, padronizado, controlado e “subordinado”, reafirmando posições de poder, práticas e representações que estão relacionadas não apenas aos bastidores da realização dos eventos judiciais (como as audiências), mas também aos procedimentos de contato com o público externo. Assim, o contato dos/as pesquisadores/as com o Judiciário é também um dado de pesquisa para observar o exercício ou não da justeza procedimental das instituições legais. Portanto, os estudos sobre o Judiciário exigem atenção tanto ao que acontece com as pessoas envolvidas nas audiências como também às experiências pessoais das pessoas que olham o que acontece. Um diálogo entre o que os pesquisadores observam e o que experimentam oferece uma visão abrangente que enriquece esse campo dos estudos. O reconhecimento de nosso papel como pesquisadores na pesquisa, nossa subjetividade e nossas experiências são elementos que ajudam a reconstruir a audiência de custódia e nos permitem compreender (de dentro e de fora) o que acontece ali.
Além disso, as interdições, obstáculos e controles impostos pelo campo revelam também muito do próprio funcionamento da instituição. Há um condicionamento constante de autorizações, concessões e permissões para tudo o que nesse espaço é realizado, mesmo situações em que esses pedidos não seriam necessários, como o de acompanhar uma audiência, visto que ela é pública.
A relação com os juízes tem um caráter hierárquico e protocolar, assim como observamos em audiência, com relação ao contato estabelecido entre esse ator e as pessoas presas. A reverência necessária para o contato com os juízes, os protocolos de acesso (que mudavam de acordo com o perfil do/a juiz/a) revelam um exercício coercitivo que se impõe não apenas pelo poder de autorizar ou não a nossa entrada na sala, mas também de limitar o escopo da realização da pesquisa da forma como ela havia sido inicialmente planejada. Essas resistências podem revelar não apenas um Judiciário refratário a olhares externos e avaliação daqueles que não compõem o campo do Direito, mas também uma forma de impor uma autoridade que tem como ponto característico o distanciamento, opacidade e baixo accountability.
O foco da Justeza Procedimental está na atenção aos procedimentos dados durante o contato. Por outro lado, a experiência de pesquisa nas audiências de custódia de São Paulo demonstrou a indiferença dos atores do judiciário em relação aos pesquisadores, resultado semelhante ao que pesquisas anteriores haviam apontado em relação aos custodiados ou seus familiares. Nessa perspectiva, identificamos que a participação do público parece pouco importar para a reprodução do ritual fortemente guiado pelas instruções normativas. Tampouco princípios como a voz, a neutralidade e o respeito parecem orientar as interações com esses atores. Isso implica dizer que nem mesmo em um espaço judicial criado sob a prerrogativa da importância do contato, esse contato parece relevante para o desenrolar da audiência. Portanto, se buscamos compreender as fontes de legitimidade desses atores, outros focos, tais como aqueles que contemplem a participação dos pares e outros atores internos ao Judiciário neste processo, precisam ser explorados.
Finalmente, em uma perspectiva metodológica, esse trabalho reforça a importância da etnografia para acessar aspectos referentes ao funcionamento das instituições policiais, que por vezes podem escapar de outras abordagens. Apesar de esta abordagem ser comum nos estudos sobre o poder judiciário no Brasil, ela inova ao lançar o foco da investigação para as experiências dos pesquisadores, ou seja, aspectos da experiência em campo que costumam estarem ausentes ou tangenciais à pesquisa assumem uma posição central. Os resultados apontados aqui indicam que aspectos como a personificação dos procedimentos, a indiferença, a falta de transparência, o desconforto de ser observado publicamente e de receber e aceitar o escrutínio público também estão presentes nas relações estabelecidas com os pesquisadores. Neste sentido, ao longo deste trabalho buscamos articular nossas experiências e desconfortos com a literatura existente, a fim de refletir como essas reflexões também informam sobre a nossa relação com o campo e sobre o funcionamento do judiciário como um todo.
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Notas
Recepção: 23 Noviembre 2021
Aprovação: 04 Mayo 2022
Publicado: 01 Junio 2022